Confirmada a notícia trágica da morte do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, aos 41 anos recém-completados, fui questionada pelo jornalista Fernando Andrade, na CBN, a respeito da marca que o tucano deixou em sua gestão à frente da cidade.
Não é possível falar em uma marca distintiva do ponto de vista administrativo. Covas herdou a cadeira de João Doria menos de dois anos depois de ser eleito seu vice em uma inédita conquista em primeiro turno, em 2016.
Tinha então 36 anos, uma breve experiência no Executivo, como secretário de Meio Ambiente de Geraldo Alckmin, mas uma longa trajetória partidária, além de uma vivência dos bastidores da política que vinha literalmente de berço, do convívio com o avô e ídolo Mário Covas, com quem chegou a morar no Palácio dos Bandeirantes.
O estilo jovial, o gosto não disfarçado por viagens e baladas, uma então recém-adquirida disposição para perder peso, mudar a alimentação e investir na saúde e na forma física levavam a que seus adversários e mesmo alguns aliados apontassem nele a inapetência pelo dia a dia da administração, que exige longas horas dedicadas a questões burocráticas e que numa cidade como São Paulo, que de fato não para, uma rotina exaustiva de trabalho.
Essa crítica, aliada à dúvida a respeito de se ele conseguiria imprimir a própria marca à gestão herdada de Doria consumiram os primeiros meses de sua gestão, nos quais ele se eximiu de fazer grandes mudanças, até para não atrapalhar uma já complicada eleição de Doria ao governo do Estado.
Foi só a partir de 2019 que ele se sentiu livre para fazer as mudanças que entendia necessárias e que visavam contemplar aliados políticos. Algumas levaram a que se indispusesse com o próprio Doria, como na Cultura. Mas a dúvida quanto à vocação para a gestão permanecia.
No dia 11 de outubro de 2019, ele me convidou para almoçar com ele e alguns secretários, em seu gabinete na prefeitura. Fiz a pergunta sobre isso diretamente a ele, e perguntei justamente se isso seria uma ameaça à sua reeleição.
Não vou me lembrar as palavras exatas, mas me lembro do que ele disse: que vivia a política desde criança, estava no PSDB desde adolescente, tinha sido deputado, secretário, vice-prefeito. Como era possível que duvidassem de sua aptidão e de seu apetite pela vida pública. Faltava um ano para a eleição: a partir dali suas entregas começariam a aparecer e ele seria reeleito.
Bolsonaro já era presidente. O PT vinha do desgaste da prisão de Lula e do impeachment. Ele imaginava que seu aceno à esquerda na composição do secretariado e uma plataforma de centro que não estigmatizasse os adversários venceria a eleição.
No dia 29 daquele mesmo mês ele descobriu que tinha um câncer na cárdia, com metástase. Foi essa diferença de dias que fez com que a conversa permaecesse tão nítida na minha memória.
Cheguei a imaginar que o diagnóstico o levaria a desistir da candidatura. De fato, houve uma movimentação dos partidos para sondar a possibilidade de lançar outro nome. Mas assim como foi firme ao encarar penosas sessões de quimioterapia sem se afastar da prefeitura (dissipando ali as críticas pela pouca afeição ao trabalho na prefeitura), ele bateu o pé de que seria candidato para submeter seu trabalho ao escrutínio do eleitor.
Não foi a única circunstância adversa que enfrentou. Veio a pandemia. Ele teve covid-19 em meio ao tratamento. Mas levou a candidatura adiante, com transparência, conciliando uma campanha atípica com o tratamento. Tive a oportunidade de entrevistá-lo quatro vezes ao longo da campanha de 2020, além de questioná-lo em dois debates.
Em todas as vezes perguntei sobre se sua situação de saúde não seria um entrave a novo mandato de quatro anos. Era uma dúvida mais que legítima, que a cidade merecia contemplar. Ele em todas repetia que não estava curado, mas estava bem e confiava na cura.
E ao longo de um ano entre nossa conversa e sua reeleição construiu outro legado, que não foi de natureza administrativa -- respondi ao Fernando Andrade e repito aqui que sua gestão não deixou grandes marcas de Educação, Saúde, urbanismo, mobilidade urbana -- mas político.
Primeiro, ao conduzir a cidade durante a pandemia, mesmo vivendo um drama pessoal paralelo, segundo preceitos científicos no enfrentamento da pandemia, assumindo inclusive o potencial desgaste de adotar medidas impopulares num ano eleitoral.
E, depois, e não menos importante, ao se portar de forma republicana diante dos adversários, mesmo tendo a máquina e a maior estrutura financeira entre os postulantes. O Brasil vinha de duas campanhas, a presidencial de 2014 e a presidencial e estadual de 2018, tóxicas, abjetas mesmo, em que a aposta na desinformação, na aniquilação dos adversários e na negação da política foram marcas.
Ele resgatou a importância dos partidos, não fez uma falsa estigmatização da esquerda, não procurou surfar a onda de direita que vinha de dois anos atrás e não se furtou a traçar uma linha divisória no chão, mostrando que o presidente representava a negação da política e um risco à saúde da democracia.
Principalmente no segundo turno, ele e também seu rival, Guilherme Boulos (PSOL), brindaram uma cidade abatida pelo vírus e pela crise econômica com o mínimo que se deveria esperar dos homens públicos: respeito, razoabilidade, diálogo, divergência republicana.
O fato de o eleitor ter referendado sua gestão naquela ocasião não se deveu a nenhuma obra, ou à melhora significativa em indicadores sociais e econômicos. Mas a uma gestão confiável da pandemia e à razoabilidade na política. A direita histérica bolsonarista ou ex-bolsonarista ou protobolsonarista não foi nem ao segundo turno na maior cidade do Brasil dois anos depois de o capitão se eleger. Não foi pouca coisa. E projeta um caminho para 2022, de que é possível uma candidatura de centro legítima, desde que haja autenticidade.
Não só o câncer, o nome, a risada por vezes sarcástica e as entradas acentuadas nas têmporas uniram a trajetória dos dois Covas, o avô e o neto, com a diferença de exatos 20 anos entre a morte de um e de outro: também foi um traço de ambos essa prática da política dos cavalheiros, o que não os eximia de ser grosseiros ou irritadiços às vezes, mas nunca autoritários.
Por tudo isso, a marca que Covas deixou para o debate público e para a História foi que o que existe de melhor na política não é nenhuma panaceia de "nova política" ou o culto a uma falsa "não-política": é a prática da arte da política em sua plenitude, com as idiossincrasia, as contradições, as imperfeições e as limitações que ela tem numa democracia que muitas vezes vive de solavancos, mas não pode prescindir da negociação e do dissenso, sob pena de deixar de ser democracia. (OGlobo)